Preconceito da doença mental: um olhar da psicanalise




Arlete Modeli


A civilização tem seu inicio a partir da construção de normas de conduta moral, instituídas para que o homem se adequasse a elas, e por consequência, vivesse em comunidade. Para sair da barbárie e poder ter uma vida civilizada houve a imposição de certos rigores e exigências, além da renuncia da satisfação dos instintos e necessidade de autodomínio, visando à adesão do homem ao pacto social.
O conflito entre a busca do desejo de felicidade e o desenvolvimento da cultura impôs um conflito inerente a todo homem que participa da civilização, ou seja, a imposição do principio de realidade, deixando para um segundo plano a felicidade.
Se num primeiro momento essa troca pode parecer estranha, afinal, “por que eu abriria mão da felicidade?”, por outro lado, é a forma possível de frear o estado primário que o homem “conserva” de satisfazer seus desejos de forma imediata, usando muitas vezes a violência e agressividade. Nesse sentido, a civilidade exigiu o preço de frear essa primeira resposta para se tornar possível conviver socialmente.
Mas, como fica esse impulso de responder, revidar, destruir e, por que não, aniquilar o outro que nos incomoda? Na verdade continua em nós, mas contido, culpado, amansado, refreado.
Somos capazes de identificar em nós um lado “escuro”. Aquela vontade de responder, de rapidamente tirar as diferenças da frente, poder, por vezes, “chutar o balde”. O que nos faz ponderar, refletir e contornar essa primeira vontade é esse pacto social, esse laço que nos promete um ganho postergado, uma felicidade mais elaborada, o que em psicanalise chamamos de ‘ganho secundário’. Assim, cultura é um processo complexo que abrange conhecimento, lei, moral, hábitos e aptidões adquiridos pelo ser humano em família e na sociedade. E nesse sentido, utilizamo-nos do prazer de pertencermos a um grupo o qual nos reconhecemos.
Entretanto, a hostilidade entre os indivíduos, violência, discriminação, preconceito, asco, são estados de mal estar que se manifestam frente ao que parece diferente e ameaçador.
Nesse sentido, Freud (1930) fala do ‘narcisismo das pequenas diferenças’. Seriam as formas de reagir deslocadas, excessivas, de difícil justificativa. Consideramos, num primeiro momento, que essas reações são conflitos internos sobre aquele “tema”, por exemplo, a doença mental. A dificuldade de conter o medo de desenvolver o mesmo quadro, ficar igual, faz com que se reaja, na tentativa de conter esse medo, agindo sobre o outro.
Assim, “narcisismo das pequenas diferenças” significa admitir a existência intrínseca do conflito entre tolerância e intolerância.
Apesar do apelo ao politicamente correto, não temos a garantia da eliminação do mal estar do homem, como, por exemplo, de que não houvesse mais preconceitos e discriminação com pacientes portadores de doença mental.
A doença mental, sabemos, ainda sofre muito da intolerância e preconceito. Estudos indicam que profissionais da saúde mental e familiares são os que muitas vezes demonstram a dificuldade de estar disponíveis para entender as necessidades e o sofrimento desses pacientes, reconhecendo seus direitos e potencialidades.
A psicose, principalmente a esquizofrenia, tem ainda em seu bojo a ideia de loucura e  de uma doença que provoca severas perdas cognitivas, incapacitando o sujeito na sua funcionalidade mais básica. Tal ideia impede que seja feito um maior investimento, predestinando seu futuro a ser uma pessoa com poucas perspectivas frente a estudo, trabalho, lazer e relações sociais.
Nossa experiência aponta que o desejo de cada um pode ser reconhecido e respeitado, oferecendo a chance de se lançar em busca de um retorno à vida.
Reconhecendo essas ações como formas de demonstração de intolerância e medo do diferente, nos arriscamos a pensar que muito desses conflitos tem como causa a falta de conhecimento e de compreensão, tanto sobre a doença, quanto da existência de um sujeito que ainda pode ter desejos de ser uma pessoa reconhecida nos seus valores.  Nesse sentido, o ato de compreender o outro seria fundamental para suportar com maior facilidade o desapontamento que causaram como ‘”sendo diferentes”, pois, desse modo, as exigências em relação a eles serão muito mais modestas.
Promover uma escuta que permita compartilhar com o outro de uma forma horizontal, promovendo identificações entre os semelhantes, permitirá que essa exigência idealizada crie um campo diversificado de identidades no qual o sujeito está livre da exigência narcísica de ser sempre idêntico a si mesmo. Seria nesse formato horizontal, permitindo que o indivíduo possa criar uma linguagem capaz de nomear suas vivências singulares, que se daria a construção de novas narrativas que fornecessem outros sentidos, os quais a cultura e a civilização poderiam se beneficiar. Com isso, as tradicionais verdades poderiam ser questionadas do seu lugar de absolutas e criar novas formas de compreender o sujeito esquizofrênico.




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