A melancolia a partir do personagem Lester do filme Beleza Americana



Texto de Rosilene Sessin de Fraga

O presente trabalho tem o objetivo de fazer uma análise fundamentada do filme Beleza Americana, mais especificamente de seu personagem principal, Lester Burnham, explorando algumas características de seu comportamento, a partir do texto de Freud de 1917, Luto e Melancolia.
Beleza Americana (título original American Beauty), foi lançado nos Estados Unidos em 1999 (no Brasil em 2000), dirigido por Sam Mendes, e ganhador de cinco Oscars na premiação do ano de 2000.
O enredo do filme está centralizado em uma família de classe média americana. Lester é o marido, Carolyn é a esposa, e Jane a filha. Eles vivem um casamento tradicional, porém de aparências, na essência, são uma família infeliz. Lester é um publicitário infeliz na sua profissão, um marido submisso e um pai ausente. Carolyn é uma corretora de imóveis ambiciosa, uma esposa autoritária que preza pelos costumes familiares tradicionais e uma mãe superficial. Jane é uma adolescente calada, infeliz na relação com o pai e com a mãe, e extremamente decepcionada com o fato do pai assediar suas amigas.
A história desta família começa a mudar quando Angela, uma das amigas de Jane, também assediada por Lester, retribui o assédio, o que desperta Lester de sua vida atual, mexendo com toda a dinâmica da família, e provocando reviravoltas nas relações. Angela é a personagem chave para o desenrolar das mudanças de Lester, que provocarão mudanças em toda a família. Essas mudanças serão reforçadas em Jane pela chegada de um novo vizinho Ricky, filho de um militar extremamente rígido e uma mãe muito submissa. E com Carolyn, a mudança é corroborada com sua aproximação a Buddy, um corretor de imóveis de muito sucesso ao qual ela se espelha.
O personagem central, Lester Burnham, tem traços de personalidade bastante próximos à construção sobre melancolia feita por Freud. Os principais pontos encontrados para essa constatação são:
1.    Tristeza profunda, desanimo e desinteresse pelo mundo externo;
2.    Grande diminuição da autoestima e depreciação de si mesmo;
3.    Não consegue apontar qual foi sua perda, qual a razão de sua tristeza;
4.    Aumento da libido do eu, voltou-se seu investimento para si.
5.    Por fim, a dúvida quanto ao final da história, teria ele melhorado, porém foi assassinado, ou ele mesmo teria se suicidado?
1. Tristeza profunda, desanimo e desinteresse pelo mundo externo.
“Os traços mentais distintivos da melancolia são um desânimo profundamente penoso, a cessação de interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade, e uma diminuição dos sentimentos de autoestima a ponto de encontrar expressão em auto recriminação e auto envilecimento, culminando numa expectativa delirante de punição.“ (FREUD, 1917, p. 138).
Lester se apresenta, no início do filme, com a seguinte narrativa: “meu nome é Lester Burnham. Este é o meu bairro, esta é minha rua, esta é minha vida. Eu tenho 42 anos e, em menos de um ano, eu vou estar morto. Claro, eu ainda não sei disso, e, de certo modo, eu já estou morto. Olha só, eu estou me masturbando no chuveiro, este vai ser o ponto alto do meu dia, daí para frente, é só coisa ruim”.
Lester é um publicitário infeliz na sua profissão, um marido submisso e um pai ausente. Ele não tem nenhuma motivação com seu trabalho, sua empresa está passando por uma crise e ele corre o risco de ser demitido. Ele e Carolyn se conheceram ainda muito jovens, na faculdade, e tinham uma ótima relação, que foi mudando ao longo do tempo. Lester tem muitas dificuldades de se aproximar de Jane, conversar com a filha, ser mais presente como pai.
2. Grande diminuição da autoestima e depreciação de si mesmo.
“O melancólico exibe ainda uma outra coisa que está ausente no luto - uma diminuição extraordinária de sua autoestima, um empobrecimento de seu ego em grande escala. No luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio ego. O paciente representa seu ego para nós como sendo desprovido de valor, incapaz de qualquer realização e moralmente desprezível; ele se repreende e se envilece, esperando ser expulso e punido. Degrada-se perante todos, e sente comiseração por seus próprios parentes por estarem ligados a uma pessoa tão desprezível.” (FREUD, 1917, p. 141).
Sua autoestima é muito baixa, e isso fica bastante evidente em algumas partes de sua narrativa. Em um momento referindo-se a esposa e a filha, ele diz: “elas pensam que sou um perdedor, e sou”. Quando a esposa insiste em manter uma imagem de casal perfeito em uma festa de seu trabalho, Lester menciona: “eu serei o que você quer”, e ainda ao sair desta festa para ir fumar com o garçom (o novo vizinho de sua casa e que depois se tornará o namorado de sua filha), e o garçom ser pego por seu chefe e pedir demissão, Lester diz: “você virou meu herói pessoal”.
3. Não consegue apontar qual foi sua perda, qual a razão de sua tristeza.
“O objeto talvez não tenha realmente morrido, mas tenha sido perdido enquanto objeto de amor (...) mesmo que o paciente esteja cônscio da perda que deu origem à sua melancolia, mas apenas no sentido de que sabe quem ele perdeu, mas não o que perdeu nesse alguém.” (FREUD, 1917, p. 140).
Em uma passagem do filme, ainda antes de conhecer Angela, Lester diz: “sinto que perdi algo, mas não sei exatamente o quê”, evidenciando este traço melancólico.
4.  Aumento da libido do eu, voltou-se seu investimento para si.
“Mas a libido livre não foi deslocada para outro objeto; foi retirada para o ego. (...) a escolha objetal é efetuada numa base narcisista, de modo que a catexia objetal, ao se defrontar com obstáculos, pode retroceder para o narcisismo. A identificação narcisista com o objeto se torna, então, um substituto da catexia erótica, e, em consequência, apesar do conflito com a pessoa amada, não é preciso renunciar à relação amorosa. Essa substituição da identificação pelo amor objetal constitui importante mecanismo nas afecções narcisistas; (...) O ego deseja incorporar a si esse objeto, e, em conformidade com a fase oral ou canibalista do desenvolvimento libidinal em que se acha, deseja fazer isso devorando-o.” (FREUD, 1917, p. 143).
Ao conhecer Angela, uma das amigas de sua filha Jane, Lester fica encantado, e assedia-a, assim como já tinha feito com outras amigas da filha, mas a diferença é que Angela corresponde suas investidas. Angela aparentemente mostra-se uma menina muito segura de sua beleza e feminilidade, e bastante experiente sexualmente, isso ao final do filme prova-se ao contrário, quando Angela revela ser virgem, mas ao longo de todo o filme, ela reforça essa imagem, o que alimenta as fantasias de Lester.
Em seu primeiro contato com Angela, Lester diz: “ah tudo bem, eu também não me lembraria de mim”, demonstrando sua baixa autoestima já mencionada. Porém, ao ouvir atrás da porta a conversa de sua filha com Angela, e esta mencionar que transaria com ele, se o mesmo fosse um pouco mais forte e malhado, desencadeia toda a virada no comportamento de Lester. Ao perceber o interesse de Angela, isso serviu como gatilho para enfrentar toda sua infelicidade, com a esposa e com o trabalho.
Ele começa a malhar, fumar maconha, a enfrentar as colocações de sua esposa, coisas que até então ele se calava e aceitava. Em uma cena onde estava se masturbando, a esposa o repreende e ele a enfrenta, questionando as últimas vezes em que transaram. No trabalho decide chantagear seu chefe, e faz um acordo para sair da empresa recebendo uma quantia em dinheiro, vai procurar um emprego em uma lanchonete, como atendente, e diz: “estou procurando o mínimo de responsabilidade”, exatamente o contrário do que sua esposa esperava dele. Vende seu carro e compra um carro que sempre quis ter, sem pedir permissão da esposa, como sempre fazia antes, e ainda diz: “este é o carro que sempre quis, agora eu mando”. Começa a falar palavrão no jantar, questionar o cardápio e a música que ouvem durante a refeição: “agora vamos ouvir esta música”, a mesma sugerida pela filha em algumas cenas anteriores, e complementa: “estou farto de ser tratado como se eu não existisse”. Até então alimentava uma imagem para a sociedade, imagem essa idealizada pela esposa e alimentada por ele em sua total submissão, até que isso começa a mudar: “nosso casamento é de fachada, é um comercial”.
Outro fator interessante de se mencionar são os sonhos que Lester tem a respeito de Angela, ao beijá-la saem pétalas de rosas de sua boca. As rosas são bastante representativas, já que sua esposa se dedica imensamente ao cultivo de rosas em seu jardim em frente a casa, sendo esta prática uma das representações da esposa perfeita de uma família americana. Além disso, em todos os seus sonhos com Angela, ela sempre fala palavras de incentivo para ele, elogios, o que mostra o contrário do comportamento de sua esposa.
5. Por fim, a dúvida quanto ao final da história, teria ele melhorado, porém foi assassinado, ou ele mesmo teria se suicidado?
“É exclusivamente esse sadismo que soluciona o enigma da tendência ao suicídio, que torna a melancolia tão interessante - e tão perigosa. (...) Nas duas situações opostas, de paixão intensa e de suicídio, o ego é dominado pelo objeto, embora de maneiras totalmente diferentes.” (FREUD, 1917, p. 145).
“A melancolia ainda nos confronta com outros problemas, cuja resposta em parte nos escapa. O fato de desaparecer após certo tempo, sem deixar quaisquer vestígios de grandes alterações, é uma característica que ela compartilha com o luto.” (FREUD, 1917, p. 145).
Uma das últimas cenas do filme retrata a tentativa de relação sexual de Lester e Angela, o que seria a efetivação de sua fantasia, porém isso não acontece, pois na última hora, Angela diz ser virgem. O diálogo deles é interessante, pois demonstra a fragilidade e a insegurança de Angela, coisas que estavam escondidas na imagem de segurança, sensualidade e sexualidade, exatamente o que tinha o atraído. Enquanto se mostrava segura, Angela incentivou Lester a tornar-se seguro, e quanto o mesmo atingiu este patamar, ela mostrou sua insegurança. O trecho do diálogo mostra isso:
Angela: “Acha que eu sou comum?”
Lester: “Você não seria comum nem que quisesse”.
Angela: “Acho que não tem nada pior do que ser comum. Essa será minha primeira vez. Pensei em te contar, para caso você ache que eu não fui bem”.
Lester abraça Angela, nada acontece, e ele vai preparar um sanduíche para ela. Na cozinha Lester pergunta para Angela sobre Jane, se ela é feliz. E Angela continua:
Angela: “E você como está?”.
Lester: “Já faz muito tempo que não me perguntam isso. Eu estou ótimo!”.
Após este diálogo, Lester começa a fazer uma retrospectiva de sua vida, com lembranças de bons momentos, tanto com sua esposa, quanto com sua filha, olhando fotos. Depois disso, a cena seguinte é de sua morte, sem um assassino determinado, podendo ser ele próprio (suicídio), sua esposa ou mesmo seu vizinho.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Além do personagem central, Lester Burnham, brevemente analisado neste trabalho, o filme Beleza Americana traz um vasto campo de possibilidades para discussão de questões cotidianas dos comportamentos e relações presentes em nossa sociedade atual. Dentre estes fatores, destacam-se as relações pais e filhos e os conflitos adolescentes, presentes tanto na personagem de Jane, quanto no personagem de Ricky, e as aparências falsas sustentadas para serem socialmente aceitos e para própria autoafirmação, apresentados nos personagens de Carloyn, Angela e coronel Frank. Outro fato interessante são as quebras das falsas aparências e uniformidades acontecerem motivadas por fatores externos, como por exemplo Angela ser o fator externo de mudança de Lester, tanto em seu papel de marido, quanto de pai, quanto de profissional, Jane o fator externo para mudança de Rick, que passa a enfrentar seu pai e decide sair de casa, e também Buddy ser o motivador externo de Carolyn.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMERICANA, Beleza (título original American Beauty). Direção: Sam Mendes. Produtora: DreamWorks SKG. EUA, 1999. 121 min.
FREUD, S. Luto e Melancolia. (1917) In: ESB. Vol. XIV, Rio de Janeiro: Editora Imago.

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