Epigenética e psicanálise: uma breve apresentação



Texto da Psic. Arlete Modeli


A neurobiologia identificou que o cérebro se mostra aberto ao mundo, transformando o ambiente e também se transformando, é a chamada plasticidade neuronal. Sabe-se que para além de um mapa genético, nosso cérebro funciona como uma combinação dos fatores genéticos e marcas deixadas por nossas vivencias, nossas experiências. Desde o nascimento, o cérebro se modifica, cria conexões, baseadas nas experiências do ambiente que vive. Assim, nossas vivências sensório–motoras, estresse, nossas relações com nossos pais e outros convívios, imprimem de forma significativa nossa posição no mundo. (Kolb, &Gibb, 2011) Somos marcados pela nossa história de vida e tudo que nos circunda.

Um braço importante da neurociência, dentro da biologia que estuda essas mudanças, é a epigenetica. Em 1942 Waddington (1905-1975) definiu "epigenética" como uma parte da biologia que estuda a relação entre os genes e seus produtos. Indentificou-se assim, que os fatores epigenéticos não alteram a fita de DNA (a herança genética continua a mesma), mas promovem alterações na expressão genética, a partir da sua interação com o meio, que dirá quais vão se manifestar e quais proteínas serão transcritas (Simmons, 2008).

Com a proposta de entender a manifestação da psicose, evidências indicam que a exposição a traumas na infância ou outras adversidades está associada ao aumento de risco de experiências psicóticas. Apontam que a exposição a eventos traumáticos, mesmo quando mais tardios, também se associam ao aumento de risco de experiências psicóticas subseqüentes. Além de identificarem que há uma relação entre o número de eventos traumáticos e o risco de experiências psicóticas. (Trotta A, Murray RM, Fisher HL,2015; McGrath JJ, et al.,2017; Beards S, et AL. 2013; Kelleher I, ET AL. 2008; Spauwen J, ET AL. 2006; Saha S, El AL. 2011; . Jenkins R, ET AL. 2010)

A hipótese sugere que a experiência de situações traumáticas pode apresentar alterações na expressão genética, “formando fenotipicamente” sujeitos que podem vir a desenvolver doenças mentais, dentre elas a psicose. Esses estudos tratam sobre a capacidade que temos de “gravar” experiências na vida. Esses achados apontam que essas impressões no cérebro podem nos “dirigir” para determinados transtornos mentais. Mas ainda é objeto de estudos.

Entretanto, no final do século XIX, Freud, ao dar voz a pacientes que apresentavam sofrimentos psíquicos, reconhece que, para além dos aspectos orgânicos, a história de cada sujeito era parte relevante da constituição psíquica, bem como dos sintomas e sofrimento que apresentava.

Curiosamente, ao ouvir as histéricas, se depara com relatos de situações traumáticas, ligadas a cenas com conteúdo sexual. Esse seria o inicio do reconhecimento de que haveria algo nessa vivência que seria um excesso e que causaria sintomas, aparentemente desprovidos de sentido, mas que a partir do recurso da fala, promoviam uma descarga das emoções penosas que estavam relacionadas aos acontecimentos traumáticos.

Nesse momento Freud vai se deparar com um achado importante para a Psicanálise, identifica que tal relato não se referia ao real da cena, mas a uma construção fantasiosa. Depara-se com a realidade psíquica, produto de uma laboriosa construção efetuada pelo sujeito no percurso de sua constituição psíquica.

Ao mesmo tempo, observa que o sintoma não surgia logo após a ocorrência do fator traumático, e que ele permanecia presente no psíquico como se fosse uma força atual em constante atividade. Compreende-se, então, que uma cena só se torna traumática quando transformada em lembrança, a partir de sua evocação por meio da repetição de uma cena análoga. Para surgir como traumático são necessário dois tempos: o tempo do acontecimento e o a posteriori, que é o tempo da produção de sua significação, no qual pode ter lugar o sintoma. Freud com essa descoberta identifica que o valor do trauma não está no acontecimento em si, mas na associação estabelecida pelo sujeito e que o traumático é sempre singular. Nesse sentido, há uma mudança de enfoque colocando a ênfase sobre a lembrança e não sobre o acontecimento, surgindo assim o conceito de fantasia, e sua formalização teórica passa a se articular à teoria do trauma.

Ao longo dos anos Freud compreende o funcionamento do aparelho psíquico, identificando conceitos como pulsão, desejos, ambivalências, repressão, resistência, inconsciente, Complexo de Édipo, amor, ódio, entre outros que foram reconhecidos como elementos constituintes do psiquismo. Assim, o sujeito, para elaborar seu traumatismo psíquico (Prado e Féres-Carneiro, 2005), se depara com conteúdos que surgem em um tratamento psicanalítico, que possa ser representável e simbolizável.

Mas e quando esse sujeito experiência situações reais de abusos, seja de ordem física, sexual, moral, negligencias?

Se a neurociência vai identificar que essas experiências reais apontam para marcas também reais na nossa carga genética e neuronal, a psicanalise identifica que a concretização desses desejos (antes fantasiosos), tornam-se para a criança, uma experiência excessiva, estranha e não prazerosa, causando, além de sofrimento, o sentimento de não existência como unidade psíquica independente (Faiman, 2004), estando ligada à experiência de desamparo por parte do ego diante de um excesso de excitação. Nesse sentido, uma das formas possíveis de lidar como essas vivências pode ser o desencadeamento de experiências psicóticas.

Nesse primeiro momento, é possível considerar que experiências psíquicas extremas geram respostas psíquicas, geralmente de sofrimento. E nesse ponto a neurociência e a psicanálise podem ter pontos de convergência. Entretanto, é importante ressaltar que mesmo sendo possível identificarmos uma imagem dos processos cerebrais de um sujeito psicótico/esquizofrênico, essas imagens não abarcarão a totalidade do estado psicótico. Mesmo que os sintomas pertinentes a esse transtorno estejam presentes, sempre vamos nos deparar com diferentes quadros psicóticos, com sua manifestação, com os específicos gatilhos que desencadearam tal crise e a maneira como cada um historiciza seu percurso. Mesmo que tenhamos respostas específicas e sob medida para certos eventos/transtornos, quando o sujeito fala, dá um colorido e nos aponta, com o relato, que a imagem que pode ser igual em casos próximos ao seu, não se repete no relato da construção das marcas traumáticas deixadas, pois cada um tem sua forma única de significá-las, ou não. Assim, apesar de ser muito relevante descobertas e compreensão de padrões investigados e medidos, faz-se também importante considerarmos as diferenças nas semelhanças.

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