Um magistrado é premiado em um congresso de esquizofrenia.

Dr. Martinus Van de Bilt


O congresso de 2019 da Schizophrenia International Research Society acaba de acontecer, entre 10 e 14 de abril, em Orlando, na Flórida.
Quem foi o principal conferencista do congresso? Ao contrário do que poderíamos supor, não foi um cientista ou médico reconhecido, mas...um magistrado!
No ano 2000, quando o Juiz Steve Leifman começou seu trabalho na 11º. Tribunal Judicial da Flórida, no condado de Miami- Dade, descobriu que tinha virado o porteiro da maior clínica psiquiátrica da Flórida - a Cadeia do Condado de Miami-Dade. Ao fazer um levantamento de dados epidemiológicos da população carcerária, observou que a Cadeia do Condado de Miami-Dade tinha a maior porcentagem de pessoas com doenças mentais graves dentre todas as áreas urbanas dos Estados Unidos. Estimou que 20.000 pessoas com necessidade de tratamento de saúde mental eram presas a cada ano no Condado de Miami-Dade, principalmente por contravenções e crimes de baixo potencial ofensivo. O município gastava US $ 80 milhões por ano para abrigar e tratar essas pessoas.
Para melhorar o sistema quebrado, o juiz Leifman criou o inovador Projeto de Saúde Mental Criminal do 11º Tribunal Judicial, que consiste em programas para encaminhar pessoas com doenças mentais que cometeram delitos de pequena gravidade não para o encarceramento, mas para unidades de cuidados comunitários.
Seu Projeto continua sendo um desafio. Duas frases de seu discurso como keynote speaker do congresso atestam isso:
"As pessoas continuam  morrendo na prisão quando poderiam estar recebendo as coisas que precisam para a sua recuperação".
"Há claramente algo muito errado com uma sociedade que está disposta a gastar mais dinheiro para encarcerar pessoas mentalmente doentes do que tratá-las".
Tentando nos transportar para a nossa realidade:
Enquanto boa parte dos Ministros de nossa mais alta corte judicial usam o tempo deles e de alguns de seus cerca de 154 funcionários (sim, isso mesmo, cada Ministro do STF tem 154 funcionários...) e os recursos dos impostos para propor investigações, mobilizar a polícia judiciária, etc. para elucidar supostos crimes contra a honra dos Ministros, há no Brasil, segundo o Banco Nacional de Monitoramento de Presos (BNMP 2.0), atualmente 602.217 presos, dos quais cerca de 40% são presos provisórios, ou seja, sequer foram julgados.
Façamos um cálculo bem grosseiro: segundo o “Mental health in the Americas: an overview of the treatment gap” publicado pela Organização Pan-Americana de Saúde, a taxa de prevalência em 12 meses de transtornos mentais graves variou de 2% a 10% entre os estudos no continente americano. Usando os dados do Juiz Leifman, de que a prevalência de doenças mentas graves na população carcerária é 10 vezes maior do que na população geral, um cálculo conservador sugeriria que há 60.000 encarcerados no Brasil portadores de um transtorno psiquiátrico grave. Para se ter uma ideia melhor do tamanho do problema: dos 5.561 municípios do Brasil, somente 524 teriam uma população maior...é como se uma cidade inteira, do tamanho de Amparo-SP, por exemplo, estivesse presa e, muito provavelmente, sem tratamento.
Rediscutir o Código Penal me parece urgente, mas não é disso que trato aqui, até porque não sou jurista.  Sabemos, apenas como cidadãos e não como juristas, que ao longo de séculos de amadurecimento institucional se atribuiu ao Estado o monopólio do uso da força e do encarceramento de cidadãos. Mas com a contrapartida de que, uma vez sob custódia do Estado, este se responsabilize por assegurar ao cidadão tratamento digno.
Será que podermos dizer que sim?
Só merece ser considerada uma sociedade civilizada aquela que protege seus cidadãos mais frágeis – as crianças e os idosos, mas também os portadores de transtornos mentais graves que, por sua condição de encarceramento, sequer têm o direito de procurar tratamento.



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